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Taquigrafia: Desafios de Mudança.


Gostaríamos de pensar Taquigrafia, seus profissionais e seu objeto de trabalho.

Não nos move o ímpeto de discutir as diversas técnicas, taquigráficas, seus métodos, performances ou soluções. Quando falamos em pensar Taquigrafia, vemo-nos impelidos, sobremaneira, pelo desejo de discutir questões que julgamos capitais para a retomada do rumo histórico de nossa categoria.

Assim, pensar Taquigrafia hoje é pensar no profissional, na sua capacitação; pensar no profissional é pensar na sua relação com o seu ofício, que começa a dar sinais de profundas e necessárias transformações. Destarte, pensar Taquigrafia é, também, a nosso juízo, pensar o futuro; é tentar antever como a Era das Tecnologias Informacionais nos abrigará no milênio que se avizinha. Era em que, segundo previsões:

"mais de 70% do PIB japonês será formado pela entrada no mercado de produtos que sequer foram concebidos hoje; (...) 90% dos processos de manufatura industrial e distribuição comercial serão diferentes dos padrões atuais; a decodificação de voz será utilizada em mais de 90% das atividades ligadas, direta ou indiretamente, ao mundo dos negócios; a partir de 2010, as profissões terão uma vida útil média de 12 a 14 anos; já a partir do início do próximo século, a especialização das carreiras terá um tempo de vida de aproximadamente seis anos, após o que terão que ser revistas (...)" (conclusões extraídas da Conferência Anual da World Future Society (1997) – Londres.)

De forma a construirmos uma visão crítica do presente para perquerir o futuro, queremos pensar Taquigrafia propondo algumas questões dentre as inúmeras que esperamos excitar nos espíritos dos profissionais da milenar Arte Tironiana.

Não pretendemos, é forçoso revelar, propor soluções mágicas para os problemas que, por certo, emergirão dessa discussão. Tentaremos, isto sim, revelar preocupações que se somam ao longo de nossa vida profissional, sistematizá-las e, assim, procurarmos, com o auxílio dos colegas, o caminho das soluções.

A Psicologia, já há algumas décadas, preocupa-se com as implicações surgidas da relação homem vs. local de trabalho. Desde os hoje comuns testes vocacionais até as análises mais profundas, que buscam saber qual o grau de interação que há entre os indivíduos do grupo profissional e o seu nível de comprometimento com o trabalho em si, a Psicologia tem abordado a questão do homem como ser complexo, interativo, participativo e produtivo.

Dito assim, cabe-nos agora indagar:

Qual o nível de comprometimento do profissional de Taquigrafia com o seu ofício?

Esta, uma primeira questão.

Inicialmente, procuremos evidenciar o que aqui se considera nível de comprometimento. Entenda-se como tal o grau de afinidade, disposição, voluntariedade, dedicação, engenho e operosidade de um "trabalhador" em relação ao seu "trabalho". É quase inevitável, a esta altura, pensarmos em "Laboratório", palavra cuja superficial pesquisa etimológica nos conduz à idéia do "espaço onde o trabalho é oração" – a ciência, para o pesquisador; a dança, para o bailarino. Nesse nível, o comprometimento é máximo.

Do lado de cá, pensamos ser hoje baixo o nível de comprometimento do Taquígrafo com o seu ofício.

Quais as causas?

Aventam-se algumas hipóteses: inexistência de uma carreira própria, com níveis e padrões de remuneração correspondentes; falta de opções para profissionais com o mesmo perfil no exíguo mercado de trabalho subequatorial, condições materiais precárias na grande maioria dos serviços ou departamentos, efeito mosaico, que causa ao profissional a impressão de distância em relação ao resultado final de seu mister, ansiosa expectativa de superação por meios tecnológicos de toda natureza, ausência de cursos de capacitação próprios ou afins com a atividade taquigráfica propriamente dita; diversidade de formação acadêmica dos profissionais etc.

Pois bem; tomadas uma a uma, todas essas são causas suficientes para um baixo nível de comprometimento. Todavia, cumpre-nos observar, em nossas situações típicas, quais e a que ponto contribuem para a emersão desse fenômeno, procurando, desde logo, soluções com vistas a reverter o processo.

Sem querermos incorrer em mero reducionismo, avaliamos que, modernamente, superada a questão do baixo nível de comprometimento do Taquígrafo em relação a seu ofício/arte, teremos condições de melhor enfrentar os desafios postos e vencê-los.

Dentre as muitas causas arroladas acima, desejamos tratar de uma que é de especial interesse para o Taquígrafo dos dias de hoje: Evolução Tecnológica.

Em que medida os recursos tecnológicos podem vir a tornar obsoleto o registro taquigráfico tal como é feito?

São freqüentes os relatos de suplantação de técnicas, muitas delas seculares, por sistemas informatizados, como é a robotização das fábricas, ou ainda e mais recentemente, a substituição dos grandes e ruidosos arquivos pelos compactos computadores pessoais.

A Velha Arte dos escribas – ora escravos, ora iniciados – não, frise-se, não está fora do alcance das transformações levadas a efeito pela via do implemento tecnológico, cujo escopo é o da universalização e estandardização dos procedimentos. Portanto, cientes da inexorável sucumbência das técnicas manuais/artesanais frente à cada vez mais vulgar utilização de processos eletrônicos, devemos estar atentos para o curso que essa nova realidade impõe hoje à nossa categoria.

A título de ilustração, podemos dar notícia de alguns fatos que corroboram essa tomada de posição: a recente invenção, na Europa, de um teclado para terminais de digitação, denominados por seus criadores de Velotype, capaz de permitir ao digitador preparado uma performance de mais de 1000cpm (caracteres por minuto), o que, em Língua Portuguesa, por amostragens já feitas, pode significar um desempenho de aproximadamente 170ppm (palavras por minuto). O projeto, desenvolvido por uma equipe de engenheiros e lingüistas holandeses, tem por característica principal o desenho do teclado: absolutamente ergonômico, é constituído de um eixo central, correspondente às vogais, ficando as consoantes dispostas à esquerda e à direita conquanto sejam letras iniciais ou finais do vocábulo. A par desse desenho inovador, o novo teclado permite que se digite não caracter por caracter, mas sílaba por sílaba, pressionando-se simultaneamente todas as letras do vocábulo, cabendo ao software de controle arranjá-las corretamente no domínio de um dado idioma. Ainda mais, estará sendo lançado no último trimestre deste ano (1999) um revolucionário software de reconhecimento de voz. Este programa é capaz de, trabalhando em consórcio com a placa de áudio de um PC doméstico, transcrever as palavras faladas registrando-as em seu editor de textos, ora como ditado, ora como comandos de operações a serem executados pela máquina, a uma velocidade de aproximadamente 160ppm, abrangendo um espectro de vozes que vai de 15Mhz a 155Mhz.

Diante dos surpreendentes e aparentemente inesgotáveis recursos que a tecnologia em informática está a nos proporcionar, sempre com o fito de facilitar ou suprimir o trabalho humano, justifica-se a indagação:

Qual o futuro de profissionais como nós?

Queremos crer que, aqui, neste ponto, é necessário estabelecer-se uma conexão entre o primeiro questionamento e este que vimos de fazer.

Pode haver dois tipos de profissional: um com alto nível de comprometimento e outro com baixo nível de comprometimento. Aquele desenvolve suas atividades com profundo interesse, servindo de intérprete do texto, reordenando e reforçando suas estruturas internas, adaptando-o, quando necessário, às normas do discurso em língua vernácula, sem, contudo, apropriar-se dele, confundindo-se com o orador, sem tirar-lhe a autoria da preleção; aqueloutro não o faz senão como um copista, reproduzindo ipsis verbis tudo quanto foi pronunciado pelo orador, transpondo inadvertidamente da fala para a escrita, sem resguardar-lhe as distintas peculiaridades, e, o que é pior, sem um maior vínculo com aquilo que faz senão o meramente empregatício ou salarial. Este Taquígrafo será, de certo, colocado à margem do processo de modernização dos procedimento em Taquigrafia em função da força centrífuga que resulta da aplicação das novas tecnologias. Aquele primeiro, ainda que de alto nível de comprometimento, também poderá sê-lo se não estiver disposto a se capacitar ao desempenho de uma nova função. Só assim estará melhor preparado para suportar as mudanças que se farão operar. E, na verdade, como afirmou a Srª Barbara Hubbard, da World Future Society, "a crise que vivemos hoje não é a da morte e do fim; este fenômeno é a crise do nascimento".

A primeira mudança necessária, que já antevemos, é a da reeducação, ou melhor, do redimensionamento das técnicas de abordagem do nosso objeto de trabalho: o texto. Só o aprimoramento, pelo profissional, de sua capacidade intelectiva do discurso é que o tornará, digamos assim, técnico eficaz e necessário, capaz de fazer uso desses novos equipamentos em sua plena potencialidade.

O que queremos dizer com reeducação, ou melhor, com aprimoramento da capacidade de intelecção do texto?

Há alguns anos os estudiosos da Língua se preocupam com o tema. Não raro, ao se reproduzir as opiniões de alguém, ainda que o faça de modo a apenas transcrever o discurso falado, procede-se a uma nova seleção de termos e até mesmo a outra construção morfossintática distinta daquela pela qual optou o autor. Embora desse processo transpareça uma certa ingenuidade, não se pode impedir que ocorram distorções ou interferências danosas no discurso-alvo. Isto, por sua vez, leva a duas indagações:

1) Será possível informar, reportar ou transcrever opiniões sem manipulá-las?

2) Quais as estratégias para a isenta informação, reportagem ou transcrição de opiniões?

E ressalte-se que aqui tomamos "opinião" por tudo aquilo que uma dada pessoa possa dizer ou pronunciar e que venha a ser objeto do nosso trabalho, seja ela uma pessoa do povo, uma personalidade ou uma autoridade constituída.

Sabemos ainda que o processo de reprodução de toda e qualquer informação é fruto de uma certa compreensão do fenômeno apresentado. Se, de um lado, o discurso se funda em estruturas técnico-político-sócio-culturais por parte daquele que o produz; de outro, aquele que o interpreta ou reproduz deve ter igual compreensão das mesmas, sem o que não desempenhará a contento seu papel. Isto implica submeter a construção da informação aos mecanismos das condições de produção daquele discurso-alvo, o que exige, necessária e previamente, o domínio de algumas técnicas, como, por exemplo, a "análise da ideologia da fonte informadora". Este, como outros, passam a ser os novos elementos que se farão demandar do novo profissional em Taquigrafia.

Poderíamos, aqui, enveredar por uma série de técnicas de abordagem textual, o que, indubitavelmente, não é o objetivo do presente trabalho. Todavia, o que pretendemos é traçar um paralelo entre a excitante e moderna atividade descrita e a nossa secular atividade taquigráfica. Só com a aproximação daquela a esta, guardadas obviamente as suas identidades e objetivos, consolidaremos, também no novo século, a importância dos Taquígrafos, promovendo uma elevação do nível da profissão, tornando-nos Tratadores de Textos. O profissional com essa preocupação deverá fazer-se sentir necessário à instituição a que serve, resgatando a sua credibilidade.

Inobstante o fato de a nossa categoria, historicamente, contar com um grande prestígio junto às Mesas Diretoras dos órgão a que pertencemos, sabemos que essa estatura e sua respectiva sustentação política são elos frágeis de uma cadeia ao mesmo tempo dinâmica, complexa e instável, pois que não há base política que preserve um estado de coisas que, sem a urgente determinação por mudanças, entrará em franca superação.

As reflexões que ora quisemos provocar têm o único intuito de estimular nossos colegas Taquígrafos a tomarem consciência de que seu futuro está atado à constituição de uma nova ordem, de um novo paradigma profissional.

Conclamamos, pois, a todos aqueles que se julgarem provocados por essas idéias a, valendo-se do espaço aqui aberto, debater novas proposições em torno da Taquigrafia Moderna.

Cláudio Vizioli